30/12/05: San Salvador de Jujuy/ARG - San Pedro de Atacama/CHI

Até que enfim! A parte bonita da viagem começa aqui! Consequentemente, as fotos também.

Acordo cedo e animado e vou tomar meu desayuno (café da manhã), que carinhosamente traduzi para o português como sendo "desarranjo". Não que seja ruim, mas é muito fraco o café da manhã, tanto na Argentina quanto no Chile. Vou ao estacionamento cuidar da moto. Aquela checada geral, se está tudo apertado, tiro a lateral e saco o filtro de ar, para desempenho "menos pior" na altitude.

Atrasamos para sair, e dessa vez não foi (só) culpa minha: resolvemos fazer o câmbio de moeda por lá, o que não foi uma boa nem em termos de tempo, nem de praticidade, nem de economia (perdemos em dois câmbios - primeiro passam do dólar pro peso argentino, depois do peso argentino para o chileno).

 

Montanhas multicoloridas no caminho rumo ao Paso de Jama e homenagem a meu MC

Rios de degelo, passam o verão quase secos e são excelentes pra passear de moto
Eu saí vestindo minha roupa normal para pilotar: bota, calça reforçada, camiseta de rally, jaqueta forrada e luvas. Mas deixei todo o "aparato" para frio no top case, com fácil acesso. Começamos a subir, e começam a aparecer montanhas com dezenas de cores se sucedendo. Pontes atravessam rios que parecem nunca ter visto água. Óbvio que eu saio da ponte e entro de moto no rio, pra ver se é firme. E é. E é gostoso de pilotar nele. Dou um grande rolé pelo rio, contornando as montanhas. Paro a moto no meio do rio e vou pra longe, tirar uma foto que tente dar a impressão da magnitude do lugar. Aí percebo o efeito da tal da altitude, pela primeira vez. Com 100 metros de corrida moderada estou ofegante. Volto pra moto e volto pro asfalto.

Começa a subir, subir, subir... Paisagem atrás de paisagem, uma surpresa depois de cada curva. Chegam os caracoles. Cinquenta metros de reta, uma curva, cinquenta metros de reta, outra curva. É uma delícia. Só há que se ficar atento às pedras no chão, que rolam dos penhascos ao lado da pista. Paro no alto dos caracoles para tirar a foto ao lado e já estou com frio. Coloco mais uma roupa por baixo, calça e blusa destas que usam os montanhistas, são finas e justas, não atrapalham os movimentos. Coloco outra luva, de lã, sob as Alpinestars. E um ivanhoé debaixo do capacete. É fácil se despir e vestir no deserto. Você vê e escuta a quilômetros de distância. Pelo silêncio, é possível saber que não passará ninguém por onde você está se vestindo dentro de uns 10 minutos...

A moto já está começando a ficar fraca. Acho que uns 20 a 30% da potência já eram. Mas ela não chega a "engasgar", apenas não rende como o normal.

 

Subir os caracoles é o que há!

Retão interminável e salar grande fazendo o horizonte
Depois de subir mais um bom tempo, eu e a moto sentimos que estamos bem altos. Tenho uma sensação "confortably numb" que me faz lembrar dos livros que contavam que os alpinistas morrem felizes, pois estão totalmente entorpecidos pela falta de oxigênio. Aqui eu estou entre os 4 e 5 mil metros de altitude, não sei ao certo. Começo a chorar dentro do capacete, tão bonita é a vista, tão gostosa é a estrada. Na travessia entre Jujuy e Atacama, nos separamos, cada um foi no seu ritmo. Mas, quando conversamos na chegada a Atacama, ficamos sabendo que todos se emocionaram por estar ali. De fato, é coisa de outro mundo.

No dia anterior estávamos pilotando a mais de 45º C, hoje estamos por volta de 0º C (o Erlon tinha termômetro na moto). Minha moto perdeu cerca de metade da potência. Mas não falha. É só "carburar" no acelerador, achar o melhor binômio rotação/acelerador que ela vai embora. O desempenho se assemelha ao de uma Honda Falcon ao nível do mar, ou seja, não é nada de dramático. Na foto acima (uma de minhas prediletas), corri para tirar a foto com a moto no meio da pista e não atrapalhar ninguém. Fiquei ofegante de novo, mas nada que traga desconforto. Duzentos metros de corrida equivalem a um quilômetro, mais ou menos. A potência da moto cai pela metade, a nossa pra 1/5, mais ou menos.

 

A KTM ao lado do salar.

Taí um lugar bacana pra se andar de bicicleta

Chego no salar grande e é tudo meio surreal. Quando começo a me acostumar com o visual, vejo um vulto no meio daquele branco todo, vou chegando perto e percebo que é um rapaz andando de bicicleta... Aí é só você e Deus gargalhando dentro do capacete. Por este caminho também já se começa a ver as lhamas, vicunhas, esses bichos típicos da região.

O frio já se estabilizou, apenas as mãos endurecem um pouco. Tem gente que pára a moto e põe a mão no motor pra que ela volte a "funcionar", eu não cheguei a tanto. Começa um vento forte, lateral. Coisa de uns 80 km/h. Eu deito a moto pra direção do vento e me "escondo" do outro lado. Foi o jeito mais confortável que achei para enfrentar a situação. Acabaram-se os caracoles, estou no altiplano e só tem reta.

Chegamos em Susques, onde há uma lanchonete e um "posto de gasolina" no meio do nada, a salvação dos aventureiros. É o lanche mais gostoso do mundo (chega-se lá com uma fome...). Até a Pepsi de lá é gostosa (não tem Coca).

Mais um pouco de frio, mais um pouco de vento, e chegamos à Aduana argentina. Os hermanos que me perdoem, mas "que lixo", hein? Todo mundo de pé, em fila, tipo gado esperando a vacina. De longe foi a parte mais cansativa da travessia. Todo mundo ficou meio nauseado lá, quando misturou o nervoso de ser mal atendido com a falta de ar da altitude. O banheiro de lá é um caso à parte. Eu não fui, mas o Marco Polo me disse que é tipo um banheiro químico, só que a parte onde deveria ter a solução química tem apenas água, então imagina-se o "perfume" do local. Acho que levamos umas duas horas para passar a aduana. De novo! "Argentina: pene para entrar, pene para sair".

Poucos quilômetros após a aduana argentina, a fronteira com o Chile, na foto ao lado. A aduana chilena está apenas em San Pedro de Atacama, então vou rodar uns 200 km como se eu tivesse desaparecido. Dei saída da Argentina mas vou entrar no Chile oficialmente só dali a umas 3 horas...

 

Fronteira entre Argentina e Chile, o Passo de Jama

Seguem muito vento, algum frio, e paisagens incríveis. Meu tripmaster Totem pára de funcionar. O suporte de alumínio do sensor, na roda, quebrou. Prendo-o com um "engasga-gato" e sigo em frente. Encontro três motos paradas no acostamento. São os caras de Foz do Iguaçu que encontramos na aduana argentina na divisa com o Brasil, e que cruzamos por diversas vezes na estrada. Paro pra conversar, oferecer ajuda, ferramentas. Dizem que está tudo em ordem. Mais tarde ficaria sabendo que eles tiveram que esconder as motos no deserto e seguiram para San Pedro de carona. Eram duas XT600 e uma Supertenere, não sei o motivo pelo qual não deram conta da altitude.

Começo a descer e o vento passa a me ajudar (até que enfim está a favor). Não sei mais se meus companheiros estão na minha frente ou atrás de mim. Aproveito o melhor desempenho da moto e a estrada perfeita pra acelerar um pouco. Grande equívoco. Meu ouvido começa a assobiar. A cabeça parece que vai explodir. Paro a moto. Tiro o capacete. Sento no acostamento. Acho que desci uns 2 mil metros em uns 5 minutos, o corpo não conseguiu regular a pressão. Quase apaguei. Aparece o João Celso, de jipe, com as meninas. A Fátima teve um apagão no carro. Ficamos conversando no meio da estrada. Aparece o Erlon que, muito mais esperto que eu, quando viu a descida "infinita", desligou o motor da moto e desceu só curtindo o visual e o silêncio do deserto. Já estou quase bom. Ficamos conversando por um tempo, rindo muito e nos equilibrando de pé com alguma dificuldade. "Confortably numb"... O mal estar já sumiu. Vou em frente.

Nem meia hora depois, já estou na aduana chilena. Que diferença de tratamento em relação à argentina! Desta vez, todos são simpáticos e explicam decentemente os procedimentos. São mais severos que os argentinos, revistam as bagagens e tudo o mais (na Argentina não fazem nada a não ser te deixar esperando), mas como se percebe que eles estão trabalhando corretamente não é estorvo nenhum.

Entramos na pitoresca San Pedro de Atacama, com suas ruas de terra e prédios de adobe. Rapidamente achamos nosso hostal, afinal a cidade é minúscula, com cerca de 4 mil moradores.

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